E amanhã



Foi-se o sentir e deixou-me todos os dias iguais; tinha que comer e precisava de dormir, diziam-lhe. Mas ficava acordado a ouvir o passar de horas lentas até ao próximo dia. Foi-se o sentir e ficou sem saber o que fazer; isto ou aquilo ou o que quisessem era igual para ele. Saía antes de terminar em tudo o que começava – em nada via utilidade.

Foi-se o sentir – os vizinhos batiam-lhe à porta, e a vida continuava como o roer de uma térmita – e amanhã e amanhã e amanhã e amanhã. Há este homem e continua em casa.

Comentários

Maria disse…
"Para que conste, este cronista não nasceu em sítio nenhum. (...) ele próprio a si mesmo se foi nascendo em diversos sítios, uns exteriores outros interiores. (...)
Tudo o que de si sabe, e também algumas coisas que não sabe, está preso a estas pedras, a estas ruas, a estas fachadas. E um dia, depois de morto, ele próprio há-de ser pedra, volúvel pedra, desta pedra, e há-de continuar a andar por aí nascendo-se - oxigénio, hidrogénio, carbono, azoto - por esta gente, por estes rumores de folhas, por estes frutos. (...)
Outros escreverão cânticos de amor, outros louvações ou imprecações. A ele basta-lhe escrever-se a sim mesmo, inscrever-se, em casa, conhecendo as paredes, os móveis, os livros. Ouvir os seus mortos, tocar nos seus vivos. Quem o culpará, pois, se ficar em casa ou se, tendo partido, quiser regressar? E quem estranhará se, chamando-o pelo seu nome, ele se voltar e o seu rosto for como um rio passando?" Manuel António Pina

Beijo-te,
Unknown disse…
"Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu..."

[Fernando Pessoa]

Beijo-te,

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