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A mostrar mensagens de março, 2009

Onde me (e)levo

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Cada vez que me sinto extraviado, confuso, penso em árvores, recordo o seu modo de crescer. Raízes e copa com a mesma medida, hei-de estar nas coisas e sobre elas. E logo, quando se abram caminhos e não saiba qual seguir, não sigo um qualquer ao azar: sento-me e aguardo. Respiro com a profundidade que respirei no dia em que nasci, sem permitir que nada me distraia: aguardo e aguardo mais ainda. Fico quieto, em silêncio, e escuto-me. E quando me ouço, levanto-me e vejo onde me levo.

Assim

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Assim encerra a noite o quarto das suas sombras; assim amanhece o dia. Claridade sedenta de uma forma, de uma matéria que a deslumbre, incendiando-se a si mesma. Como eu. A minha boca espera, e tu por mim, perseguimo-nos, corremos atrás da luz, mortais como um abraço que até ao fim nunca enfraquece.

Este e não outro

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Espero regressar ao teu círculo. A minha vinda é testemunho de uma ordem que esqueci durante a viagem. Sei-o bem: arder, este e não outro, é o meu significado.

Hábeis e cães

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O teu sangue derramado pede vingança. Mas no meu deserto já não cabem espelhos. Sou um alienado. Todo o que me acontece agora no sonho resolve-se e muda de aspecto sob a luz ambígua da lâmpada sobre o sofá. Eu sou o verdadeiro assassino. O outro já está preso e desfruta de todas as honras da justiça enquanto eu naufrago na liberdade. Para me consolar, contam-me velhas histórias de erros judiciais. Por exemplo, a de que Caim não é culpado. "Serei o superego do meu irmão?" Justificou assim um drama familiar primitivo, cheio de reminiscências infantis. Para eles, todos são abeis e caíns que trocam e disfarçam a sua culpa. Mas eu não me dou por vencido. Não irei omitir: foi-me transmitido literalmente, de geração em geração, o instrumento do crime.

Lastro

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Normal. Tudo é perfeitamente normal. Como chover no Outono e frio no Inverno. Atraídos pela luminosidade do teu sorriso, acercam-se vendedores de lotaria, harekrishnas, mórmones, pombas, cães abandonados, folhas caídas e, finalmente, um mendigo. Dás-lhe uma nota de 5 e um abraço, incrédulo. Para não te deixares arrastar pelo optimismo de uma visita ao médico, voltas a olhar para o ecrã líquido do telemóvel, a ver se tens rede. Ainda que não a tenhas, ligas e custa-te a crer que não haja alguma novidade. «Não, nada?», insistes. E, depois de desligar, dás-te conta de que necessito desse lastre de responsabilidade, essa ânsia de preocupação para que não te soltes do todo, para não te pores a voar, como se não quisesses admitir que vale a pena viver, cantar no duche, ajudar a abrir a porta do elevador, dar conversa aos taxistas, entrar numa loja e experimentar roupa que não podes pagar, e escrever, sobre ti, como eu.

Mãos lentas

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Entre a água e a sombra, um olhar nocturno na metade ardente do braço, a luz que nos une como uma carícia, como um ombro perfeito. (Terei respirado a sua luz? Ao olhar-te, aproximo a lágrima). Sente-se o fogo contra o esquecimento, a chama dupla. Detenho o silêncio em tudo quanto tocas, as mãos lentas no meu rosto, em redor das costas maduras.

Ardemos

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Ainda vejo sobre o negro das tuas pupilas o fascínio do ocaso; entrando em mim a cada olhar. Escutas a sombra. Escutas-te a ti mesma. Inspiras. Juntos aqui, sobre o mesmo céu, ardemos juntos.

Ponto de fuga

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Estava muito mais longe, na distância para onde convergem os olhos quando espreitam por uma janela e a convertem em local de embarque. Ninguém pode enjaular os olhos que se acercam de uma janela, nem proibir que percorram o mundo até aos seus confins. Nos claustros, cozinhas, estrados e gabinetes da literatura universal existe uma janela fundamental à narrativa, e também nos quartos de hotel que pintou Edward Hopper. Alguém que lê um livro ou que estava a falar com um amigo, espreita pelo vidro, levanta uma persiana, e os seus olhos começam a fugir, pássaros em debandada que nenhum ornitólogo conseguirá classificar, nenhum caçador matar, que levantam voo com destino ao lugar incerto de que apenas se sabe estar longe.

Ilimitado

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Um sentir sem limites, nem os do coração humano, nem os da vida, e que surge ainda maior no despertar da terra. Um sentir inacabável, que morre para voltar de novo. A paixão de uma vida que se derrama e ultrapassa a história. Paixão que se derrama, avassaladora.

Crepúsculo

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Nos teus olhos, a calma de um rio que se abandona ao sol e lhe absorve o ouro enquanto tudo silencia. Sim, são assim: olhos que choram ao ver as estrelas. Tudo isto e mais são os teus olhos. Agora, nos teus abraços, adormeço e dizes-me palavras pequenas como se as estivesses a semear. E as tuas mão vagueiam nos meus lábios. E caiem-te palavras, sussurrantes, por entre as mãos. E ali em ti mesma, ardente, viva, ao tocar-te desaparece este cansaço amargo, este silêncio em que me escondo, este abismo, esta imobilidade que apenas salta, bruscamente, quando nada me parece possível.

Ele parece contente

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Sinto que vou vomitar um coelhito. Ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a tíbia peluda que sobe como a efervescência de sal de frutas. Rápido e higiénico, um breve instante. Tiro os dedos da boca e neles trago pelas orelhas um coelhito branco. Ele parece contente, é um coelhito normal e perfeito, apenas muito pequeno, como um de chocolate mas branco e um coelhito de verdade. Coloco-o na palma da mão, levanto-lhe a pelugem com os dedos, ele parece satisfeito de ter nascido. Ponho-o na mesa. Levanta as orelhas, eu sei que posso deixá-lo e seguir, continuar por um tempo uma vida igual à de tantos que compram os seus coelhos na praça.

Despertar

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Distraído do mundo, longe como um voo de pássaro, existo onde começa o silêncio, onde avenidas de árvores altas e de sombra longas nos levam, onde a noite acorda, face a si mesma. E tudo é pouco, e, como tu, brilha um mundo onde a beleza suspende o tempo. Ali estás tu, em silêncio. Ergues o olhar, queres, queremos, sentimos, somos noite clara. Dá-me esse teu silêncio e, na nossa infinita noite, vamos no vento, despertamos.

Passagem

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Pudesse eu dormir, como dorme uma criança; sorrir ao sonho, e sonhar contigo e sentir o sonho, e fundir-me, pouco a pouco, num outro maior. E passar pela vida de olhos bem abertos sobre um mundo interior, atento apenas ao ritmo do meu próprio coração... E passar pela vida, ser quem se evapora ao sol e perder-me uma noite, como morre uma estrela que ardeu milhares de anos sem ninguém a ter visto.

Da ordem do viver

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Há dias em que somos tão móveis como o vento e a sorte. Talvez ela nos sorria sob outro céu. Há dias em que a vida é clara, e aberta como o mar. E há dias em que estamos tão tranquilos que um parágrafo, um monte, uma ave que passa, e até as próprias penas nos fazem sorrir. E há dias em que estremecemos ao acariciar um seio. Há dias em que somos tão sórdidos como uma entranha escurecida: mas a noite acaba por nos surpreender com as suas sombras. E há dias em que somos tão sombrios como em noites sinistras. Sentimos a dor do mundo e ninguém nos pode consolar. Mas há também um dia em que partimos para nunca mais voltar... Um dia em que já nada nos pode deter!

Inclina-se a cabeça

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Inclinou-se um pouco mais. Suava de febre e na sua testa brilhavam pequenas gotas. Eu pensava: “Está muito mal. Não tem dinheiro. Não se pode por bem porque não tem dinheiro. Vai morrer porque de isso se morre em todo o mundo. Ainda que passasse o homem mais altruísta do mundo, morreria”. Reuniu três euros. Decidiu tomar um café e entrar num sítio quente. A ver se melhora. Um café vazio e mal iluminado. O balcão ao fundo, de parede a parede fechando uma esquina, com o empregado mais velho sentado porque sofria do coração, e apenas se levantava para os bons clientes. Apenas esteve um momento; o suficiente para tomar o café. Ao sair tudo continuava igual: o velho atrás do balcão, olhando para os seus pés inchados. O som e a luz pareciam ir desaparecer. Olhou uma última vez, como para uma má recordação, negra e triste. No passeio, sob as árvores, quis-se sentar. Procurou a árvore certa, e apoiado nas suas costas, desatou a chorar. Ao baixar a cabeça, caiu-lhe uma lágrima. Chorava sobre os

A arena em mim

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Dentro de mim o sonho, na manhã o significado, na tarde o sentimento. Na tarde existe o sentimento em que qualquer coisa descansa, qualquer coisa se acumula, no sentimento existe reconhecimento, existe repetição. Todo o círculo tem circunferência: a arena.

Viagem por dias e semanas

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À janela da última carruagem, vinha absorto na fuga da paisagem. Abriste mais um botão da camisa, deixando uma parte do teu peito descoberta; sonho com a estação final, como um grande edifício de vidros opacos. A viagem persiste por dias e semanas, dentro das carruagens atestadas de comerciantes e turistas chamam-se todos pelos nomes das terras. Não terei esperado em vão e sairei amparado por uma certa esperança.

Anoitecido II

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Noites de sono incerto e de solidão nua do corpo, desorientado. Aquelas noites sem luzes, eu esperava-te. Chegavas, por vezes. Olhavas para mim com olhos cheios de água salgada. Olhos que sorriam ao passar pelos meus e acariciavas-me a curva das minhas costas. Juntos, absortos. Escutando de vez em vez o bater do coração do outro. Eu sorria. E, no meio do esquecimento refrescante, no melhor do sonho conseguido, surgia denso, alucinante, o respirar. Despenhando-se, atropelando os ecos, pequenas explosões, cada vez mais próximas. Então eu, de impulso incontrolável, ardente, todo o meu corpo no teu, carne exacerbada, um ilusório escudo indestrutível. Assim, unidas as bocas, diluídos em espanto e delícia, esperávamos...

Os abismos atraem

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Inclinado sobre ti, sondo os teus pensamentos. Desejos que se removem no fundo, ondulantes no seu leito. De que me alimento? Vejo o abismo e tu, no profundo de ti mesma. Uma revelação. Nada que se pareça com o despertar brusco da consciência. Nada a não ser o olho que me devolve a descoberta vista. E vejo-me. Por vezes, a vertigem desvia-me os olhos de ti. Mas regresso sempre a eles. Atraído pelo abismo, avanço.

De que preciso

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A angústia da terra absolve os nossos olhos até que a beleza brilhe em tudo o que conseguimos ver. Aprendemos com a guerra, e, lutando pela nossa liberdade, somos livres. O horror da carne viva e a perda das coisas desejadas; tudo isto passa. Somos a legião feliz, pelo que sabemos o tempo é apenas o vento que despenteia a relva. Agora, tendo reclamado a herança de um bater de coração, de que precisamos mais?

Ano novo

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Bendito seja este novo ano, aquele dia, a estação, o lugar, o mês, a hora e o país em que reencontrei o teu olhar. Bendita entrega que me habita, as palavras, o meu nome na tua boca; e as minhas ânsias, os meus silêncios, as letras escritas e, por fim, o meu pensamento, que a partilha torna vivo.

Sentir absoluto

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O amor é (também) a absoluta necessidade de sentir-se com o outro, de pensar-se com o outro, de deixar de sofrer a insuportável solidão de quem se sabe vivo e condenado. E assim, procuramos no outro um bater de coração ao nosso compasso, capaz de bater no silêncio entre as palavras do nosso, enquanto corremos pela vida ou a vida corre por nós.