Casa

L. Gato, Évora (2013)
Soube que tinha acontecido algo irreparável no momento em que um homem me abriu a porta desse quarto de hotel e a vi sentada ao fundo, olhando pela janela de um modo estranho. Quando fui não se passava nada de estranho, ou pelo menos nada fora do habitual, nada que anunciasse o que iria suceder durante a minha ausência. Esta vez, como todas, ela prognosticou que algo correria mal e eu, como sempre, passei ao lado do seu prognóstico; saí da cidade numa quarta-feira, deixei-a pintando de verde as paredes do apartamento e no domingo seguinte, quando regressei, encontrei-a num hotel, a norte da cidade, transformada num ser aterrado e aterrador. Não conseguir saber o que lhe aconteceu durante a minha ausência e se lhe pergunto manda-me à merda; a mulher perdeu-se dentro da sua própria cabeça, faz catorze dias que a procuro; é como se ela habitasse uma realidade paralela, bem perto mas intransponível, como se falasse uma língua estrangeira.

A transtornada razão de quem quer regressar a casa e não o consegue, no minuto seguinte nem sequer se lembra de ter tido casa.

Comentários

Maria disse…
"A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (e a vida é provavelmente apenas memória), se confundem acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, a memória."

Manuel António Pina

Beijo-te e abraço-te,
Unknown disse…
Dá-me esse teu silêncio e, na nossa infinita noite, vamos no vento, despertamos.

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